sábado, 10 de abril de 2010

Do Livro: VOZES DO CERRADO


... “que escrever é eternizar-se é driblar a morte”...


Ariano Suassuna.



Vozes do Cerrado, nem de longe se propõem uma obra literária, com os rigores literários, linguísticos, estruturais, etc, que normalmente constituem o gabarito normativo que orientam e definem uma composição textual. Quando surgiu a ideia de escrever as memórias e peripécias de uma lendária figura, que habita o imaginário familiar, em nenhum momento e em instancia nenhuma do consciente pululou o desejo de fazer literatura de qualidade ou almejar um Best-seller. Assim desse devanear serelepe e despretendido de um vadio ao sabor dos ventos suaves e refrescantes do Cerrado chapadeiro, entre um café quentinho com boa prosa e biscoito caipira, entre risos e cortes de intervenções múltiplas desabrochou em tom pueril e jocoso o desejo de compilar tantas possíveis historias orais que ali se contavam e recontavam num eterna reinterpretação própria da oralidade. Achei aqueles contos lindos, me eram tão familiares, me falavam tanto com sua simbologia, com seus signos...

Dois amigos boêmios sóbrios de etanol e Cia, mas ébrios de fome de arte, um artista plástico, tecido no seio do catolicismo pagão tão comum da laicidade sertaneja a viver o seu sincretismo sem metria cultivando rios e mitos que não raras vezes não se tem a menor ideia de onde eles brotam ou brotaram. O outro um falante e irrequieto comedor de sua cultura com toda a sua diversidade, amante das rimas e versos ignorante das regras e metrias e abençoado pelo contexto pós- moderno de uma poesia livre e sem amarras...

Decidiu se ali que seria feito um livro como possível fosse, a partir de dois homens e uma multidão de falas, um guiaria, o outro ouviria, um escreveria o outro ilustraria e após faríamos uma prece ao deus do momento que o materializasse de modo a não se esvair. E assim se fez passamos dias de pena e folha à mão caminhando por trilhas e grotas, macegas na coleta de tantas historias que fluíam de lábios, ora saudosos e penumbrados pelo matiz da saudade, muitas vezes incompreensível ou intraduzível, ora com um brilho místico e contagiante que se fazia combustível no redigir dos causos e prosas.

De um punhado de histórias por vezes sem sentido nenhum, mas permeadas de tantos sentidos quanto possa se atribuir a elas, surgiu uma narrativa em rimas e versos que prefiro não enquadrar em nenhuma denominação, mas que desde que se materializou cumpriu mais do que qualquer um sonhou ou quis quando se propôs a escrever, ouvir redigir, corrigir, editar e em fim ler...

Do querer ser imortal e driblar a morte, dando longevidade a um punhado de causos do sertão goiano adentramos em campo tão amplo e diverso que o resultado foi o livro Vozes do Cerrado. Editado em numero limitado, mas infinitamente superior a qualquer propósito de seus idealizadores, lido por uma série de mestrandos e doutorandos da UnB e por um punhado mais de graduandos e graduados que sobre ele desejou por os olhos e apreciar o que esses estrofes poderiam ofertar-lhes em algum momento de leitura e distração. Não que o fato de o leitor ter graduação o redima de algumas imperfeições ou que o leitor letrado seja melhor que o iletrado, já que ler é um exercício que se poder fazer de muitos modos, mas fora lidos por gente da academia que o adotou como material de fundamentação de pesquisa e assim ampliou sua força de se fazer driblador da morte e também fora acolhido com amor e carinho de caipiras e lavradores e lavradoras sem letramento nenhum ou de letramento rudimentar que recebiam mais que um livro de versos e rimas, mas sim, um pedacinho de seu imaginário, de sua história, que nenhum historiador verificou como um fato histórico, mas que o amor a vida simples buscou meios de fazer com que outros ainda que pelas letras de uma poesia singela pudessem render lhes o culto de alguns instantes de leitura, um pequeno objeto para guardar ler e referenciar se quando alguém duvidar de seus causos e contos. “quem conta um conto aumenta um ponto” diz o provérbio do povo quantos pontos terei eu alinhavado no tecer da poesia e assim preenchido lacunas em nome de uma tal coerência narrativa, (mesmo inconsciente kk), o fato é que agora já não é meu ou de João ou Jucelino é de todos e cada um que dele se ocupar no mais agradeço a vida pelo Cerrado e ao Cerrado pela vida com tela contém, pois viver no cerrado é aprender a reconhecer na feiura do bioma e na singeleza de sua biodiversidade o eterno mistério do belo no colo do feio moldando vida e sonhos que se renovam e se eternizam na fala e no fazer da gente da chapada. Vozes do Cerrado é só uma pequenina gota de tanta beleza e vida que habita o “pai Cerrado” e sua família tão diversa.

 
Escritor da obra e do texto
Kiko Di Faria

terça-feira, 6 de abril de 2010

A ESPARTA CARIOCA

Recentemente tive a oportunidade de ler algumas matérias relacionadas ao conhecido documentário do rapper brasileiro Mv Bill intitulado Falcão-Meninos do Tráfico. Produzido entre os anos de 1998 a 2006, o documentário acompanhou 17 adolescentes moradores de favelas cariocas que tiveram suas vidas dissecadas e reveladas no cotidiano. Neste intenso trabalho Mv Bill propõe uma visão realista do tráfico de drogas e seu cruel alistamento de meninos que robustecem as fileiras de um exército que luta por um “estado paralelo”. Quando perguntado sobre a razão que o levou a realizar este trabalho responde Mv Bill:

“Porque eu vivo perto dessa realidade e eu sempre vi esse problema analisado por antropólogos, sociólogos, especialistas em segurança, que não vivem essa realidade. A idéia é permitir que o país faça uma reflexão sob um novo ponto de vista, que é a visão dos jovens sempre considerados os grandes culpados”.


Ao conhecer a história de alguns destes meninos e de relatos do dia a dia daqueles que se tornaram um soldado “Falcão” (nome que se dá ao jovem que vigia e protege a boca de fumo, a comunidade e principalmente o traficante) imediatamente me veio a mente os meninos de Esparta, cidade Estado da Grécia antiga. Obviamente guardadas as devidas e grandes proporções (para não dizer gigantescas) e não julgando o mérito quanto a ideais, não poucas semelhanças podem ser vistas entre a educação do menino espartano e a “educação” do menino falcão do morro carioca.


A educação grega teve em Homero suas bases de sustentação. As tradições doutrinárias advindas do oriente e guardadas pelos primitivos helenos, não se consolidaram como fonte para a cultura grega que encontraram nos poemas homéricos os fundamentos para sua educação e prática de vida. A Ilíada e a Odisséia representaram para os gregos o símbolo maior de sua grandiosa história. Portanto a educação grega não podia ficar alheia a estas poesias muito menos sem a determinante influência das mesmas. No seu livro Noções de História da Educação, Theobaldo Miranda Santos concorda com esta verdade quando diz:



“Esses dois grandes e belos poemas forneceram ainda aos gregos, o seu ideal educativo que foi transformar cada criança num homem de ação e num homem de sabedoria, encarnados nas figuras heróicas da Ulisses e Aquiles”.


A época histórica da educação grega distingue bem seus dois caracteres principais. De um lado Atenas e sua educação nitidamente marcada pelo ideal humanista grego, do outro Esparta, com seus traços fundamentais de militarismo e subordinação integral aos interesses do Estado.


Em suma, a educação espartana se concentrava em formar soldados prontos para qualquer guerra. A maior parte dos cidadãos de Esparta, especialmente os periecos e ilotas, viviam submetidos pelo poder das armas e desta forma se tornavam “escravos” deste próprio sistema educativo.

É inegável que a cultura ocidental em muito foi marcada pela cultura grega. Grande parte de nossa educação e pedagogia são oriundas da Grécia antiga. Lorenzo Luzuriaga lista como uma característica da cultura grega o “princípio de competição e seleção dos melhores, na vida e na educação”. Facilmente se percebe esta característica na educação espartana. O processo seletivo em Esparta começava já a partir do nascimento do menino. Como a prioridade do Estado espartano era a formação de um exército forte e combativo, a criança que nascesse doente e frágil sequer tinha o direito de continuar viva. A respeito deste terrível critério escreve o historiador Thomas Ransom Giles:


“Poucos dias após o nascimento, o filho é inspecionado por um conselho de anciãos. Estes decidem se o menino deve viver ou morrer. A decisão depende de o menino ser sadio e forte ou doentio e fraco”.

O que me parece é que esta característica grega transcendeu o tempo, tomou proporções diversas e se tornou um marco na sociedade ocidental moderna que por tabela alcançam o Brasil, o Rio de Janeiro e a favela carioca. Em estado de “guerra” quase que permanente (como na Esparta antiga) o morro carioca também se arma com seus exércitos paralelos onde o princípio da competição e eleição dos melhores se faz presente, semelhante ao que acontecia na antiguidade.


A civilização espartana ganhou renome na história como um povo militarizado, rude e inculto. Os cidadãos de Esparta não eram livres, eles estavam inseridos num ideal de Estado coletivo em que em tudo se subordinavam. Eram submetidos incondicionalmente as autoridades e desde cedo eram formados com o intuito de morrer por Esparta. Luzuriaga citando Plutarco revela a severidade e dureza da educação espartana:


“De letras não aprendiam [os espartanos] mais que o indispensável: toda educação se orientava no sentido de que fossem bem mandados, sofredores no trabalho e vencedores na guerra;... cresciam em idade,... cresciam as provas”... ”Roubavam também o que podiam para comer... a pena de quem era apanhado, era não comer e apanhar”.

Ainda dentro deste processo educativo em que o menino espartano se via distante do ensino e tendo o roubo como fonte de alimento bem como sinal de astúcia e habilidade, Plutarco fala a respeito de um jovem que escondeu sob o manto um filhote de raposa que roubara e mesmo o animal lhe dilacerando a barriga com unhadas e dentadas, ele resistiu até a morte para ocultá-lo.

Semelhante aos jovens espartanos, os jovens do tráfico em seu “processo de formação” não poucas vezes se vêem ausentes do estudo sistematizado como também praticam delitos como sinal de habilidade e capacidade para servirem aos “donos” do morro. Quando muito aprendem também apenas o indispensável já que a grande maioria sequer freqüenta uma escola. È triste e chocante quando vemos crianças que deveriam ter em suas mãos livros e cadernos portando armas de fogo e fuzis de alta potência.

No documentário de Mv Bill percebe-se esta herança espartana na “educação” do menino do tráfico. A comunidade do morro também está submetida incondicionalmente ao “estado paralelo” que a governa. Em troca de proteção, segurança e benefícios, ela paga com a conivência, o silêncio e infelizmente com seus maiores tesouros, os filhos. Eles estão quase sempre á serviço deste “estado”. Os jovens do tráfico fazem o papel dos Kruptoi. No relato de Theobaldo Miranda Santos pontuamos esta semelhança: “Dos dezoito aos vinte anos, os jovens formavam os Kruptoi ou equipes encarregadas de policiamento do território”. No intenso trabalho de guardiões do morro e dos traficantes, um dos meninos Falcão chega a declarar: “Falcão não dorme, ele só descansa... quem é viciado, fica na onda! Tem que dar um teco, cheirar cocaína”. Esta triste realidade norteia a vida do menino do tráfico. Desta forma, sem nenhuma expectativa de vida, o ideal de muitos jovens do morro se resume bem nas palavras de um garoto de apenas 11 anos de idade quando perguntado por Mv Bill sobre o que ele queria ser quando crescesse: “Quero ser bandido”. Desde cedo eles conhecem a gíria do tráfico, brincam de boca de fumo e de dar tiros como meio de diversão.

A “educação” do Falcão semelhante ao garoto de Esparta o leva ao extremo (se necessário) por aqueles que o discipulam. Estão ali para o que for preciso. Matar ou morrer são palavras comuns no cotidiano destes meninos. Como o jovem espartano eles desde cedo aprendem a “matar antes de enfrentar o campo de batalha”. Corajosos e destemidos, eles enfrentam qualquer inimigo que se torne uma ameaça ao seu território. Os “alemães” (forma pela qual chamam a policia) também não intimidam o menino Falcão, pois estes são treinados para darem se preciso for a própria vida em favor do morro.

Dentre todas as semelhanças existentes entre a educação de Esparta na Grécia antiga e a “formação” do menino do tráfico no morro carioca, inegavelmente uma se destaca. Nas duas, os meninos desde a mais tenra idade são tolhidos de um direito elementar, ou melhor, de uma necessidade essencial á qualquer criança, o sadio convívio em família. Ao serem selecionados, educados e alistados em seus respectivos exércitos, eles perdem a inocência, a infância, a liberdade e por fim a própria vida. Nota-se na triste declaração de um garoto Falcão um profundo desencanto com a vida e acentuada carência em virtude da ausência deste convívio com os pais:


“Não conheci meu pai, não sei se ta vivo ou se ta morto. Tenho 17 anos e, até hoje, nunca tive um aniversário. Ninguém fez um aniversário pra mim”.



Outro aspecto que me parece relevante é sobre os desdobramentos que, tanto a educação espartana quanto a “educação” do jovem Falcão produzem. Os seus fins em pouco contribuíram ou contribuem para a formação de uma sociedade melhor. Ao contrário disto, elas formaram e formam fundamentalistas que por meio de violência excessiva almejaram e almejam constituir um “estado sólido”. Vale lembrar, porém, que nem sempre estas sociedades carregaram a marca da violência. Como o Rio de Janeiro (e aqui cito em razão do documentário ter sido realizado nesta cidade), Esparta não era severa e violenta em seu início:

“As fontes históricas que nos permitem reconstituir a fisionomia da cultura espartana não nos informam além do IV século a.C. O retrato que aqui reproduzimos da cultura e da educação espartana data dessa época. Pesquisas recentes, entretanto, revelaram que, entre o VIII e o VI séculos antes de nossa era, Esparta não era uma cidade severa, bárbara e totalitária, mas um grande centro de cultura, de arte e de beleza, o maior foco de civilização da Grécia. Segundo Aristóteles, citado por Marrou, essa transformação de Esparta teria resultado de uma revolução na técnica da guerra, na tática do combate”.

Torna-se então evidente, a singular influência que a educação exerce na construção histórica de um povo. Tanto o jovem espartano como o jovem Falcão são produtos de um sistema educativo inumano e unilateral que em pouco contribuem ao patrimônio da cultura universal.


Mediante o exposto chego a seguinte conclusão. Apesar do grande abismo existente de lá para cá, das divergentes motivações e ideais envolvidos bem como de uma possível incoerência de minha parte nas comparações, inegavelmente se vê a inconfundível “presença” de Esparta no morro carioca.

 
 
Ademar Sousa Arruda