sexta-feira, 20 de maio de 2011

Terra Brasilis: a formação e as heranças do povo brasileiro

Aos que morreram lutando por sua terra,
Aos que morreram por injustiça,
Aos que lutam contra ela onde quer que estejem,
Aos que padecem fome e miséria
[...]

E esta é a mais pura e verdadeira realidade.
(Las Casas)


São por inquietações como estas que as questões a respeito do trato ao índio nos comovem tanto. Por um povo sofrido que teve na terra o seu sangue derramado, e o mesmo sangue (de mesma tonalidade, de mesma viscosidade, portanto igual ao do homem branco) de seus “rivais”, homens colonizados. Por constantes lutas que aqui se travou, em prol da cruz e pelo benefício da civilidade; civilidade esta que deu frutos (há de se notar) à construção desses Brasis: negro, índio, branco, formando assim essa teia multicultural.

O NOSSO POVO NAÇÃO

Mas, e o que somos e o que é o Brasil? Somos brasileiros muitas vezes sem ao menos saber tal significado. Aqui se faz um Brasil não apenas caracterizado por uma única identidade nacional, mas por uma junção de várias tradições, criando assim uma nova identidade fluida de um Brasil de Brasis.

O povo nação não surge do Brasil da evolução de formas anteriores de sociabilidade [estruturado em classes opostas]. Surge da concentração de uma força de trabalho escrava, recrutada para servir a propósitos mercantis alheios a ela, através de processos violentos de ordenação e repressão (RIBEIRO; 2006: 21).

São com estas palavras que Darcy Ribeiro traduz a formação do nosso povo nação. Não foi a partir de processos civilizatórios que foi implantado aqui essa concepção de nação; mas pelos cativos da terra que aqui já existiam, convivendo de forma “pacífica” (aos seus olhos) e mítica, confirmando assim o mito do “Paraíso Terrestre”. Mas nem só de alegrias se vive este paraíso: “E onde os espanhóis chegavam se silenciavam os índios.” “Nem matar nem roubar índios foi considerado crime” , tamanha era a brutalidade e o trato dos gentios como bestiais, animais; seres sem sentimento, desprovidos de civilidade e provenientes da barbárie, “seres canibalescos”, sem lei, sem rei e fé. E assim se fez a resistência indígena, alçada pelo ideal da liberdade ante a opressão da mão do homem branco “colonizador” e escravocrata. Com a fixação dos europeus na costa brasileira, o equilíbrio existente entre as populações que habitavam o litoral foi abalado.

Toda essa “novidade”, em seu início, foi questionada pelo europeu pela própria natureza de tais ameríndios. Na tentativa de entender o seu surgimento, os homens da terra ganham o fardo de problema: “Como solucionar esse problema”, o surgimento do homem americano? Por acreditar no pressuposto do monogenismo os europeus crêem no compartilhamento da mesma origem (Adão e Eva) entre ambos os povos. Apesar da provável semelhança era alçado a eles um olhar pelo viés europeu, que julgava, criticava e ridicularizava o que foi “descoberto”: uma cultura ímpar, regada por outros preceitos religiosos e costumes heterodoxos. Por que cada cultura era dada por tamanha diferença se ambas proviam, “aparentemente”, do mesmo ancestral? O pensamento mesquinho, de fato, é pensar que todos devem ser iguais em ideais, forma ou cultura; quando na verdade as minúcias da diferença é que faz a totalidade da igualdade.

Mas imbuídos por seu ideal civilizado, os europeus utilizam a mão indígena como um mero instrumento para o trabalho, sujeitos apenas a obedecer, caracterizados por escravos naturais pelo conceito aristotélico, “forjados para a faina colonial” (RAMINELLI; 1995: 101). Porém, essa população se movimentou diante as ocupações estrangeiras, onde uns resistiam, outros migravam e os demais aceitavam o domínio sem oferecer resistência.

Devido à aproximação de ambos os povos pelo argumento de seu surgimento, acreditavam que já existia dentro dos gentios a semente do cristianismo, sendo possível brotar através da cristianização destes povos. “Todo homem possui potencial para se tornar cristão, tal pendor encontra-se adormecido até o dia da revelação” , já dizia o padre Yves d’Evreux que reforçando este pensamento dizia que após esse contato com a presença de Deus os nativos estavam mais brandos e educados. Esse processo de catequização como evolução humana propiciou alterações na vida do índio: foi a partir de um ideal europeu, “o espelho do modelo ideal” que estes povos tiveram os seus costumes alterados (mesmo que não aceito de forma branda), sua nudez sem malícia, sua língua, seu trato, sua sociabilidade entre seu meio. “Abandonaram” seus antigos costumes pela propagação na nova fé (Tupan=Deus?). Essa nova fé regada pela razão não aceitava os milagres e os mistérios ocultos que de certo eram provindos da cultura ameríndia. Mas se a razão não admitia os milagres, como explicar, por exemplo, o papel de Cabeza De Vaca, que nas terras indígenas parou vindo da civilidade tão constituída de razão? Foi por esse mítico que sua historia criou proporções e a partir daí a passividade de convivência com os índios que o escravizaram e que por ele se cativaram.

Enquanto muitos europeus invadiram o litoral brasileiro de modo brutal, existiram outros que se juntaram aos índios e passaram a viver nas aldeias. Eles se adaptaram aos costumes da população nativa e tornaram-se membros das tribos. Darcy Ribeiro em seu livro Utopia Selvagem: saudades da inocência perdida, nos conta a fábula do negro Pitum que convivendo em meio a tribo das amazonas, aprende a compartilhar de suas mesmas tradições: tanto pelo modo de comer, como pelo corpo nu (tanto de vergonha como de pelo), pintado e com adornos, se acostumando ao modo de vida levado ali. Bem alimentado de dia e “bem fodido de noite”, contribuindo para o imaginário da sexualidade por de trás da figura do índio nu. Aqui Pitum era utilizado como macho reprodutor, ou como ele mesmo se sentia, um “prostituto, pau mandado de mulher”. É aprisionado pelas nativas, da mesma forma real que aqui se aprisionou os índios, porém na fábula do negro ele “aproveita” dos regalos da vida de macho reprodutor ao mesmo tempo que se preocupa com o seu possível futuro: será que as danadas iriam comê-lo “da mesma forma que fizeram com seus filhos e maridos?”; esse pensamento o perturbava! Mas tão logo ele caia na “folia” e este pensamento sumia: logo as índias exibiam o bucho para ele dizendo “emprenhei bem, emprenhei!”. Era a miscigenação entre as raças dita inferiores, negro e índio se misturando no balanço da rede nas malocas, “um povo mestiço na carne e no espírito”, como diria Darcy Ribeiro.


No Brasil a mestiçagem sempre se fez com muita alegria, e se fez desde o primeiro dia. Eu prometi contar como. Imagine a seguinte situação: uns mil índios colocados na praia e chamando outros: ‘venham ver, venham ver, tem um trem nunca visto’... E achavam que viam barcas de Deus, aqueles navios enormes com as velas enfurnadas... ‘O que é aquilo que vem? ’ Eles olhavam encantados com aqueles barcos de Deus, do Deus Maíra chegando pelo mar grosso. Quando chegaram mais perto, se horrorizaram. Deus mandou pra cá seus demônios, só pode ser. Que gente! Que coisa feia! Porque nunca tinham visto gente barbada – os portugueses todos barbados, todos feridentos de escorbuto, fétidos, meses sem banho no mar... Mas os portugueses e outros europeus feiosos assim traziam uma coisa encantadora: traziam faquinhas, facões, machados, espelhos, miçangas, mas, sobretudo ferramentas. Para o índio passou a ser indispensável ter uma ferramenta. Se uma tribo tinha uma ferramenta, a tribo do lado fazia uma guerra pra tomá-la.

O papel do índio aqui, muito mais que um braço para o trabalho foi essencial para a formação de toda essa diversidade que nos foi deixada. Apenas se deleitar pelas tradições desses povos não quer dizer nada. São pessoas com os mesmos direitos e deveres, levantando juntos a bandeira dos direitos por igualdade. Apesar desse tempo que foi “deixado para trás” não estar tão distante, pois ainda há pessoas, em sua grande maioria, que desprezam aquilo que não conhecem, o outro sempre olhado pela ótica reversa, do diferente, do estranho.

Após esse longo caminho percorrido pelo índio há de se notar também o quão brutal foi a escravização do braço negro. Transportados até aqui de forma animal, ainda sofrem castigos: de mãos atadas e presos ao tronco, o peso da chibata “acaricia” sua pele. A cada lapada, o som do racismo soava forte, alto, e com ele a canção da aclamação á liberdade ecoando mais e mais.

[...]
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!


No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
[...]


Saber que uma nação se formou pelo uso de outra nos entristece e indigna, pois somos frutos desse povo, e por ser fruto, nos importamos com aqueles de quem somos descendentes. Pelo futuro do progresso e da civilidade, homens lançam mão de um poder abusivo para dar realidade ao seu desejo de conquista, de ganância e de soberania.

Um tanto quanto intrigante quando se fala daqueles homens e mulher, e por que não até crianças, que um dia aqui estiveram e aqui seu sangue foi derramado. Um povo martirizado pelo simples fato da tonalidade de sua pele, um negro reluzente, belo e encantado. Encantando os senhorzinhos com essa pele "cor do pecado", as mulatas eram maltratadas, estrupadas, objetos de prazer! Os homens robustos, com seus braços fortes eram "acariciados" pelo peso da chibata. E as pobres crianças? Deixadas, abandonadas pelo branco estuprador que as tinham feito, mas não criado. E o quão triste são suas histórias, o povo ainda se fez (e faz) feliz, guerreiro; com suas tradições, com suas convicções, com sua gente.

E o branco, o que fez? Destruiu, maltratou, escravizou. Derramou esse sangue brasileiro em troca daquilo que ele acreditava ser certo; em troca de café, açúcar, riqueza.

Sô resultado da suruba racial
Que se deu no canavial entre a senzala e a casa grande
E desde então pelos dois lados renegado
Vou vivendo margeado em completo abandono.
[...]

Por minha origem
Multigene e procedência
Vivo a margem da falência padecendo noite e dia
Sou mameluco genuíno brasileiro
Expatriado em minha pátria colônia do estrangeiro.

O negro no Brasil, diferente dos índios, foi forçado ao trabalho. O índio, em meio aos seus princípios resistiu de diversas formas a estes abusos corporais. E o negro? Simplesmente visualizado como ferramenta, sem sentimento; isso faz parte do relato de nossa história, não há como separar, levar ao esquecimento.

Por isso mesmo, o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na elaboração deste artigo tentei não colocar tanto o meu sentimento em questão. Confesso que falhei! Não há como se distanciar de tantos fatos chocantes, a emoção sempre pula pelos dedos de quem escreve. Como não dar importância a aquilo que somos e que criamos? Uma teia multicultural regada pelas mais diversas tonalidades, é isto que somos. Fruto de um apanhado cultural, de uma brutalidade, de amores, horrores, conflitos, guerra, mas somos nós. Há de se notar todos os percalços em que foram trilhados até aqui. O sofrimento do gentio, seu “desapego” as tradições, suas frustrações pela chegada do branco, sua rejeição, cristianização, o negro maltratado, tratado como bicho, uma “fera ferida” na luta pela liberdade. O povo por si só já carrega o fardo de sua própria existência. Essa existência amarga, lapidada pelo suor de cada dia, pela própria convicção de sua sobrevivência.

Mas a nós fica a luta de tentar acabar com essas sombras do passado, uma revolução que ganhará voz diante das camadas mais favorecidas; uma revolução em todas as nossas estruturas: educacional, social, política... Há essa necessidade de mudanças, a construção de um Brasil mais digno, puro, onde todos possam ser iguais em caráter, honra, e não a questão social sempre ser um lacre, difícil de se romper; mudando todos os conceitos taxados a nós, de um povo atrasado e incivilizado. E diante dessa questão de civilizar e colonizar, encerro a questão citando as sábias palavras conclusivas de Aimé Césaire, a respeito de tudo que foi posto neste artigo:

A prova é que actualmente são os indígenas da África ou da Ásia que reclamam escolas e é a Europa colonizadora que as recusa; que é o homem africano que pede portos e estradas e é a Europa colonizadora que regateia; que é o colonizado que quer avançar e é o colonizador que o retém.

DAYANE EVELYN


BIBLIOGRAFIA
OLIVA, Josefina de Coll. A resistência Indígena. Porto alegre: L&PM, 1974.

RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem: saudades da inocência perdida. Belo Horizonte: Editora leitura, 2007.
_____________. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp. 11 – 66.
RAMINELLI, Ronald. ‘A natureza dos ameríndios’. In Textos de História, Voll III, Número 2. Brasília, UNB, 1995. Pp. 101 – 124.
FARIA, Kiko di. Mameluco. Disponível em: < http://kkversos.blogspot. com/p/versos-que-pedem-pra-cantar.html> Acessado em 29 julho. 2010.
ALVES, Castro. O navio Negreiro. Disponível em: http://www.culturabrasil .org/navionegreiro.htm. Acessado em: 23 julho. 2010.
TV Cultura. Darcy Ribeiro: o povo brasileiro. TV Cultura, 1995. [Consult. 23 Julho. 2010]. Disponível em: http://www.casadobruxo.com.br/ilustres/darcy_povo01.htm
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Editora Livraria Sá da Costa, 1978.

domingo, 15 de maio de 2011

Pois o crime maior do homem, é ter nascido!


Ai de mim! Ai pobre de mim!

Que estou a Deus a entender que crime cometi contra Vós?
Pois se nasci, entendo já o crime que cometi. Aí está motivo suficiente para Vossa justiça, Vosso rigor. Pois o crime maior do homem, é ter nascido!

Para maiores cuidados, só queria saber que outros crimes cometi contra Vós, além do crime de nascer. Não nasceram outros também?
Pois se outros nasceram, que privilégios tiveram que eu jamais gozei?

Nasce uma ave, embelezada por seus ricos enfeites. Não passa de flor de plumas, ramalhete alado, quando veloz cortando os salões aéreos recusa piedade ao ninho que abandona em paz.
E eu, tendo mais instinto, tenho menos liberdade?

Nasce uma fera, Com uma pele respingada de belas manchas, que lembram estrelas. Logo, atrevida, feroz, a necessidade humana lhe ensina a crueldade! Monstro de seu labirinto!
E eu, tendo mais alma, tenho menos liberdade?

Nasce um peixe, aborto de ovas e lodo, enfeita um barco de escamas sobre as ondas. Ele gira, gira, por toda a parte, exibindo a imensa liberdade que lhe dá um coração frio!
E eu, tendo mais escolha, tenho menos liberdade?

Nasce um riacho, serpente prateada, que dentre flores surge de repente, de repente. Entre flores ele se esconde, e como músico celebra a piedade das flores que lhe dão um campo aberto á sua fuga!
E eu, tendo mais vida, tenho menos liberdade?

Assim, assim, chegando a esta paixão um vulcão, qual Etna, quisera arrancar do peito pedaços do coração!

Que lei, justiça ou razão, pode recusar aos homens privilégios tão suaves e sensação tão única! Que Deus deu a um cristal, a um peixe, a uma fera, a uma ave?


Interpretado por Dan Stulbach no filme Tempos de Paz.