“porque mulher e fazenda são as duas coisas que mais apartam os homens do céu, e os dois laços do demônio em que mais almas se prendem e se perdem.” (Vieira, padre Antonio. Sermões. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do livro.)
A investigação dos elementos literários como um mecanismo da expressão de determinada sociedade é completamente viável. Avaliar a maneira de escrita, o teor de determinados discursos, a compreensão de mundo, a avaliação da própria existência, a construção dos conceitos e da cultura, além de demonstrar as relações sociais moldadas pela cultura de cada sociedade, são elementos passíveis de serem investigados com a utilização de obras literárias. Compreender a literatura não como uma manifestação prática da sociedade, mas como uma manifestação que perpassa várias seleções, de modo a ser avaliada como pertencentes ao campo das ideias de um povo e que pode avaliar (com a devida apuração crítica) as relações sociais presentes em determinada cultura. Esse é o cuidado que se deve ter no trato do elemento literário para que possamos compreender as mutações que o mesmo sofreu ao longo do tempo. Esta incursão hermenêutica nos possibilita acessar, o que os alemães denominariam de zeitgeist, o espírito de uma época. O presente trabalho propõe-se, por intermédio da literatura barroca de padre Antônio Vieira, perceber a condição do feminino ao longo do período colonial no Brasil e, com a ajuda de Emanuel Araújo, perceber uma série de conceitos formados acerca das mulheres durante o referido período.
Primeiramente proponho aqui um esforço para compreender algumas características do barroco que o definem como tal, de modo a fazer também, um diálogo com o contexto histórico da época do seu afloramento. O barroco apresenta como sua característica principal o antagonismo e este fator pode ser entendido se compreendermos o período de nascimento do barroco. O barroco se desenvolve no seguinte contexto histórico: após as reformas religiosas a Igreja católica perde um pouco dos seus poderes com a ascensão de um novo discurso que fez frente ao velho e agora inútil discurso cristão. Mesmo com a diminuição de seus poderes, a Igreja continuou com um discurso influente frente à sociedade européia. A arte barroca surge nesse contexto e expressa todo o contraste deste período: a espiritualidade e o teocentrismo da Idade Media, com o racionalismo e antropocentrismo do renascimento. Compreendendo o contexto histórico fica mais claro o forte antagonismo presente na arte barroca, mas outras características, que julgo importante, devem ser apresentadas. A arte barroca destaca-se também pela utilização de alegorias e imagens de forte poder emocional com uma intenção explícita de tocar o público, estilizar e ficcionalizar o real. Dividido entre solicitações terrestres e imposições de ordem religiosa o homem barroco é um ser em permanente conflito.
Após essa dupla introdução, proponho agora envolver-me mais no recorte deste trabalho: a condição da mulher ao longo do período colonial sob a ótica barroca dos Sermões do padre Antônio Vieira, contando com o apoio do trabalho Historiográfico de Emanuel Araújo.
Na sociedade ocidental amparado por uma filosofia greco-judaica a mulher era vista como uma pecadora em potencial e que, portanto, deveria ser afastada das atividades sociais para que a sua natureza não prejudicasse os homens mais uma vez. A literatura barroca do período colonial brasileiro expressa de maneira clara a posição da mulher na referida sociedade.
“Na sociedade colonial a mulher era vista em tentação permanente e, assim, podia ser potencialmente adultera, feiticeira, enganadora, sibarita, repositório enfim de todos os males já presentes desde a primeira mulher, Eva, a Eva tentadora”. (Teatro dos vícios PP.213 - Emanuel Araújo)
A conhecida frase “lugar de mulher em casa” que vigora até os dias atuais demonstra o quanto esta filosofia se fez e se faz presente na sociedade brasileira. Assim como Portugal e quase toda cultura ocidental, diretamente influenciada pela cultura hebraica, o Brasil é uma sociedade patriarcal, onde o homem é a cabeça da família e a mulher é submissa às vontades deles.
Eva, além de cometer o pecado ela convenceu Adão a comer o fruto proibido o qual expôs toda humanidade ao pecado original e o castigo foi à expulsão do paraíso. Portanto Eva não é apenas “a pecadora”, mas também uma ameaça à vida social e que, por isso, ela deve ficar reclusa em casa para não expor os homens, novamente, ao pecado. Outra concepção sobre a mulher expressa no barroco era a da sua natureza de fácil convencimento, portanto, elas eram mais facilmente atraídas pelas tentações do demônio o que torna a mulher uma ameaça constante à sociedade. Se a primeira mulher criada diretamente por Deus foi persuadida pela serpente, quem dirá as mulheres do período colonial que são em maior quantidade e mais vulnerável à tentação do maligno.
“No Paraíso havia uma só árvore vedada; no mundo há infinitas” (padre Antônio Vieira “sermões da quinta feira da quaresma”. Na misericórdia de Lisboa. Ano 1669 pp.184).
A mentalidade do período apresenta a necessidade de reclusão do feminino no espaço doméstico, no entanto, o feminino não deixa de ter participação na sociedade colonial brasileira. Uma série de documentações, com diários, entre outras, apresenta a relação da mulher com os escravos, no processo de educação das crianças, nas relações privadas com seus cônjuges, entre outras mais. A longo do período colonial foram elaborados uma série de elementos de reclusão do feminino, entre eles, o de denegrir a mulher como “puta” ou outros adjetivos baixos para aquelas que possuíssem uma vida social mais ativa. A mulher que possuísse uma vida social mais ativa era mal vista pela sociedade, então, concluímos que, para aquelas que tentassem participar das atividades sociais teriam que enfrentar uma série de “pré-conceitos ainda mais intensos em uma sociedade patriarcal como a brasileira.
A manutenção deste discurso a favor da reclusão feminina é encontrada nos Sermões de um dos maiores ícones da literatura barroca, padre Antônio Vieira. Antônio Vieira é incisivo em seus sermões em reafirmar a posição da mulher na sociedade. Apesar de possuir um papel de mãe e, até mesmo foi a “mãe do filho de Deus, uma mulher”, o feminino continua sendo submisso aos pais, irmãos e, posteriormente, aos seus maridos.
“Tenta e engana o demônio aos filhos de Eva com a mesma traça e com a mesma astúcia com que a enganou a ela. Como a fé é o fundamento da graça, contra a fé vomitou a serpente o primeiro veneno, e na fé armou o laço à primeira mulher. Mas como? Porventura intentou persuadir-lhe que não cresse em Deus, ou duvidasse da sua divindade? Tão fora esteve disto o demônio, que antes ele ratificou a Eva essa mesma crença de Deus, uma e outra vez, supondo sempre que o que lhe pusera o preceito, era Deus: Cur praecepit vobis Deus? E o que lhe ameaçara a morte também era Deus: Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo. Pois em que esteve logo a tentação contra a fé? Não esteve em que Eva não cresse o que Deus era; esteve em que não cresse o que Deus dizia. Deus disse a Eva e a Adão que, no ponto em que comessem da árvore vedada, haviam de morrer.” (Vieira, padre Antônio. Sermões. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do livro.)
“Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer, se fosse necessário, e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar.”(Vieira, padre Antônio. Sermões. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do livro.)
A posição da mulher na sociedade brasileira faz parte, também, da construção identitária do Brasil. As palavras incisivas de padre Antônio Vieira e a ironia de Gregório de Matos perpetuaram pela sociedade e vigorou até meados do século XX e ainda é presente em nossa sociedade em pleno século XXI. É recorrente vermos nos noticiários pesquisas acerca da condição da mulher no mercado de trabalho, demonstrando que as mulheres em relação aos homens não possuem a mesma possibilidade de sucesso profissional. Mesmo com o crescimento das mulheres chefes de família o discurso do período colonial ainda vigora, aquelas tem que enfrentar uma série de bloqueios sociais para conseguirem maior espaço profissional, social, entre outros. O movimento feminista de meados do século XX irá questionar e reivindicar o espaço do feminino na sociedade brasileira. Amparado nas ideias de nomes como Simone de Beauvoir, Judith Butler, o movimento feminista alcançara inúmeras ramificações no final do século XX e início do século XXI. A principal inovação das ideias feministas está na concepção da categoria mulher como uma construção cultural, de modo a estabelecer um diálogo entre natureza/cultura, sexo/gênero, como afirmara Simone de Beauvoir ela não nasceu mulher se tornou mulher. As teorias feministas vem questionar as concepções advindas da modernidade acerca do feminino e ganha ainda mais vigor com a teoria queer, uma teoria que posiciona o gênero como um construto social, afirmando que a identidade sexual do indivíduo não é algo biológico e sim cultural e social.
Concluindo este, devo relatar que foi de intenso prazer fazê-lo. É interessante perceber como é cunhado aquilo que chamamos de “pré-conceito”, e como os mesmos permaneceram arraigados na sociedade brasileira ao longo do tempo. A reclusão das mulheres continua recorrente na sociedade atual e como os mecanismos de exclusão diminuíram com o advento do século XXI nos vemos cada vez mais diante de crimes contra as mesmas. Os incisivos discursos contra as mulheres sofreram intensas transformações e que nos deixa uma inquietação. Qual é o lugar da mulher brasileira na sociedade contemporânea?
Lucas Alves
Bibliografia:
ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios. Transgressão e transigências na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro/Brasília, José Olympio/UnB, 1993.
Vieira, padre Antonio. Sermões. Ministério da Cultura. Fundação Biblioteca Nacional. Departamento Nacional do livro.
ROSA, Maria da Gloria Sá. Cultura, literatura e língua nacional. Ed. Do Brasil, 1976-78.
BUTHER, Judith. Problemas de gênero Feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.