sábado, 11 de setembro de 2010

Algumas considerações acerca da poesia Homérica e Hesiódica na Grécia Antiga.

Diante da poesia, do fascínio e fervor de algo intrinsecamente envolvido no sensitivo humano, o homem da Grécia antiga, atribuía-lhe um significado que nos escapa pelo tempo e espaço. Não se relacionando, desta forma, com nosso modo de expressão poética contemporânea. Decerto, difere-se das artes plásticas e de sua intensa busca por formas e cores as mais diversas. Posto que, na poesia, tal tentativa de encontro se torna acessível pela potência exercida pela palavra falada. No entanto, no caso grego, não se delimita a esse simples conceito. Ela se encontra concatenada ao universo transcendente das deidades. Trata-se de um fenômeno mágico de revelação condicionado e findo por um indivíduo específico, o aedo, com uma capacidade que torna-o receptor e, por conseguinte, emissor de uma mensagem sublime.

Sobre essa perspectiva, demasiada representação se faz presente nos épicos poemas atribuídos a Homero, a Ilíada (narrativa da guerra de Tróia) e a Odisséia (narrativa das aventuras de Odisseu, rei de Ítaca). Essas narrativas, onde um tempo distante, por volta de 1400 a.C. é descrito bastante depois, possuíam valores incomensuráveis entre a civilização grega. De certo modo, a Paidéia encarna tais obras. Com Homero, os homens aprendiam a moral, se reconheciam e se faziam gregos. Por meio de poemas que reuniam ritmo, harmonia e elocução ambos de envolvência singular (dentre tantas outras epopéias e épicos vários foram os que se perderam, distinguindo-se da supervalorização dos poemas homéricos, amplamente difundidos oralmente pela Grécia insular e continental) eles instruíam-se em caráter e pensamento. Destarte, como na tragédia, havia um papel educativo despertador da emoção, da compaixão e do terror. Seus versos emanavam conceitos e beleza de linguagem de maneira conveniente.

Homero apresenta em seus épicos a experiência do confrontamento humano com os deuses. Desde a inveja, a intriga e até mesmo a reverência, a devoção e temeridade. Tudo se consolida e se encadeia graças à ação divina. A trama dos deuses se reflete em meio ao mundo terreno dos mortais. Cada personagem possui, compenetrado em si mesmo, a móira, algo semelhante ao destino ou predestinação. Cada passo não dado, as peripécias, as convulsões febris, o ardor extremo da vivacidade, os devaneios fantasiosos, a inquietude nervosa, cada lágrima destilada pelos olhos, são premeditados por um ser grandioso em sua essência. Enfim, tudo é designado por uma força estranha, divina. O destino dos homens são como muralhas intransponíveis erguidas até os céus. Não sendo atinado nem pela mais astuciosa mente humana. Na Ilíada, a móira de Aquiles é morrer na guerra, e ele tem consciência disso. Entretanto, ele assume seu destino preferindo se entregar ao Kléos do que ao esquecimento, a desprezível multidão de ninguém. A relevância dessas extensas narrativas não se situa no impasse acerca da existência ou não de seus personagens, cidades, ilhas. Mas, na sua representatividade, onde cada eco irradia uma gama de múltiplas sensações, a calon, a beleza, a imagem do homem ideal.

De tal maneira, Hesíodo, aedo grego do século VIII a.C., autor de Teogonia e Os trabalhos e os dias, também estipula um vínculo com o passado. O poema arcaico possuía uma significância muito mais “verdadeira” do que “simbólica”. Seu caráter não se equipara a História, ela a precede, embora exista certo sentido historiográfico. Todavia, o poema hisiódico destoa do poema homérico, — apesar de construída sobre a mesma forma métrica, com palavras que ressoam uma tendência mágica — não há um centro formal. Expressa um desabafo, autoral, um discurso direto contra a polis. É uma reflexão preceituada por um homem do campo, em sua íntima convicção, mais racional e critica, contra essa civilização moldada pela dinâmica cultural, onde certos valores já haviam ou estavam em processo de esfacelamento. Hesíodo parti do campo, enquanto Homero enfatiza a corte, a cidade. A temporalidade, a hierarquização dos deuses olímpicos e a intensidade com que tenta transmitir a concepção de uma lei divina e justa do soberano Zeus, de trovões ribombantes. Emergem em seus poemas distinguindo-se dos poemas homéricos onde tais aspectos são irrelevantes.

Foram mormente, por meio desses poemas arcaicos, pela voz do poeta e pela tradição oral que as potências do além e o mito foram colocados em cena. Estas notáveis construções poéticas forneceram um instrumento de informações sobre o mundo sobrenatural. Na Grécia, o mito combinava narrativas concernentes a eventos que envolviam o universo do sagrado e dos mortais. Alguns contemporâneos reduzem, de forma equivocada e com ridícula ingenuidade, o mítico a mera atribuição de sentidos ao mundo e a existência humana. No entanto, seria um absurdo voraz resumi-lo a um de seus aspectos, desconsiderando, de modo prévio, tantos outros (pedagógico, místico, religioso,...). O mito autoriza o escândalo, o fabuloso, a desmesura. Não é um simples conceito, ele é a própria essência do que representa. Por meio do mito os bem-aventurados imortais e os homens são humanizados; a ação mítica é antropomórfica por excelência, em seu sentido pleno. Os deuses se assemelham aos homens, tendo as mesmas fraquezas, virtudes e paixões do gênero humano. A tradição poética transmite um significante disponível fabuloso pelo qual os gregos conferem um papel central na vida social e espiritual.

Mesmo no período compreendido como clássico — caracterizado pela polis, pela preeminência da palavra e da escrita como técnica de amplo uso — a tradicional poesia arcaica continuava a ser decorada, recitada e, sobretudo, indispensável à sustentação da Paidéia (ao lado da escrita, nesse dado momento). A poética se sobressai quando comparada à história, advento do período. O poeta distinguia-se do historiador, essencialmente, não por sua arquitetura de versos e métrica, mas por permanecer no universal (basicamente, refere-se ao que tal categoria de homens fez ou disse em determinadas circunstâncias). Ao passo que, o historiador permanece no particular (trata do que, por exemplo, Alcibíades fez ou deixou de fazer). Quiçá, por este tipo de preceito a história tenha sido tão rechaçada na península balcânica e nas ilhas do mar Egeu. A influência desses versos consta, em determinados momentos, ainda, nos relatos dos maiores nomes da História durante a Grécia Clássica. Heródoto de Halicarnasso, historiógrafo das Guerras Médicas, ocorridas em torno de 484-408 a.C. (e também dos povos do oriente), as considerou, segundo sua apreciação, como um desígnio de Zeus. Tucídedes, notável pela acuidade de vistas sobre a democracia ateniense e seus políticos, tomou por diversas vezes dados míticos como verdadeiros. Ambos comprometidos com a descrição resultante de fatos verídicos. Obviamente, nosso estatuto de verdade não se iguala ao deles. Entretanto, tal percepção nos informa, de certo modo, como, em um período abarrotado de arcabouços conceptuais e investigações históricas, no próprio âmbito do racionalismo grego, dados contidos na poesia homérica e hesiódica ainda são tidos como possível e informativo.


Fernando Sousa Teixeira
(seja bem-vindo)


Bibliografia
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Rio de Janeiro: Difel, 2008.

DETIENE, Marcel. ‘Pela boca e pelo ouvido’ e ‘Ilusão mítica’. In: A invenção da mitologia. Rio de Janeiro / Brasília, José Oympio, UnB, 1992.