domingo, 7 de agosto de 2011

Relatos de viagens
Imagens do período descobrimentista

Como que numa interdependência cumplicista, viagem e relato podem ser vislumbrados como duas faces de uma mesma realidade. Quantas viagens se efetivaram por fundar-se em relatos fantasiosos e elucubrações cientificas e literárias e quantos relatos surgiram fantasiosos e impositivos em eloquentes colocações, matizados de literatura e cientificidade, a partir de uma viagem? Viagem e relato estão tão intrinsecamente imbricados um no outro que é difícil dissociá-los. Toda viagem gera um relato, ainda que do viajante para ele próprio num exercício mental, num psico-relatar, que pode vir a ser socializado a terceiros ou não, e todo relato possibilita uma viagem, senão física com deslocamento no tempo e no espaço, pelo menos num exercício mental que transpõem o leitor de sua situação no tempo e no espaço, para o contexto do relato.


“O que não é uma viagem? Por menos que se dê um sentido figurado a esse termo - e jamais pudemos deixar de fazê-lo – a viagem coincide com a vida, nem mais nem menos: o que é esta, além de uma passagem do nascimento à morte? O deslocamento no espaço é o indicio primeiro do mais óbvio, da mudança; ora, quem diz vida diz mudança. O relato também se alimenta da mudança: nesse sentido, viagem e relato implicam-se mutuamente. A viagem no espaço simboliza a passagem do tempo, o deslocamento físico o faz para a mudança interior: tudo é viagem, mas trata-se de um tudo sem identidade. A viagem transcende todas as categorias, incluindo a da mudança, do mesmo e do outro, pois desde a mais remota antiguidade são acumuladas viagens de descobrimento, explorações do desconhecido, e viagens de regresso, reaproximação do familiar: os argonautas são grandes viajantes, mas Ulisses também o é.Os relatos de viagens são tão antigos quanto as viagens ou mais. A primeira grande vaga de viagens modernas é a do fim do século XV e do século XVI: ora naquele momento, e por mais que isso se pareça paradoxal, os relatos precedem as viagens. Desde a alta Idade Média, relatos mais ou menos fantasistas gozam da simpatia do povo e mantem acesa a sua curiosidade.”.


Imagens do período descobrimentista um retrato da expanção ultramarina
As navegações que se faziam antes do domínio dos mares pelos europeus eram rudimentares e se fundavam no arrimar, sem nunca perder de vistas a terra firme, sob pena de sucumbir aos perigos dos oceanos. As viagens ultramarinas, que tem seus primórdioscronologicamente localizado,no final do século XV com o desenvolvimento das caravelas portuguesas, representaram uma grande mudança para a vida como um todo no continente europeu. A descoberta de novas terras e de novos povos foi motivo de fortuna para as nações empreendedoras dessas viagens, bem como de uma série de novas informações acerca de outros costumes e outras culturas bem diferentes dos da Europa.

As informações acerca dessas descobertas chegavam a Europa por meio de uma série de relatos de viagem que os viajantes faziam durante as expedições descobrimentistas/achistas. Muitas especulações prenunciavam a existência de culturas, terras e povos distintos, que estavam além-mar. No entanto, somente após a conquista do oceano atlântico e o domínio do cabo das tormentas, os mares e oceanos foram desbravados pelos europeus que rompiam a linha do horizonte geográfico e mental de todo um continente (o continente europeu a priori e de todo o mundo conhecido progressivamente).

O mundo desconhecido com toda a sua diversidade mexia com o imaginário do individuo europeu (tanto do viajante, como do europeu comum em seu cotidiano) e despertava seu interesse por qualquer relato acerca desse assunto, o que acabou fazendo dos relatos de viagens um grande sucesso na Europa. Havia um grande número de pessoas interessadas nesses textos, a fim de tomar conhecimento do que havia de fato fora da Europa e, por esta razão, as impressões dos viajantes eram difundidas entre seus leitores. Vale lembrar que o público desses textos eram pessoas interessadas em diversos aspectos: militares, religiosos, econômicos, artísticos,botânicos, científicos, ou mesmo por simples curiosidade. No entanto esse públiconão se configurava um grande grupo, visto que era, em geral, um material pouco acessível aos menos favorecidos financeiramente o que reduzia drasticamente esse grupo.


O primeiro encontro - Oscar Pereira da Silva

De todo modo, ao longo dos anos, a quantidade de relatos produzidosiam aumentando consideravelmente, versando sobre diferentes partes do mundo e sobre os mais variados assuntos. O que a principio tinha como proposta apenas o descrever do que era visto, no sentido de mostrar ao leitor o que fosse mais próximo da verdade sobre as localidades e os povos abordados passou com o tempo e o sucesso dos relatos, a ser uma nova vertente literária fazendo o gosto dos letrados e dos artistas que se apropriavam dos relatos e se municiavam deles para compor seus próprios relatos e obras, criando misturas literárias e ícones imagéticos que tinham como objetivo vender a imagem do novo mundo com toda a sua carga de exotismo. Nesse interim, inúmeros relatos ganham um tom de aventura bastante acentuado, pois pode serdesinteressante ao leitor menos interessado ler apenas descrições de questões específicas. Sendo assim, não são poucos os textos que contêm descrições surpreendentemente imagéticas e que dão grande importância á subjetividade, estando carregados das impressões e reações do autor e daqueles que estavam a sua volta, cabe ressaltar que o mundo novo é de tal modo impactante sobre os viajantes que muito dos relatos expressam exatamente, o conflito do novo sobre uma estrutura mental vigente, estabelecida a partir do imaginário europeu.

A função primária e básica de um relato de viagem é tornar os acontecimentos ao longo de uma viagem, acessível de algum modo aos que dela não puderam fazer parte e mesmo aos próprios viajantes que correm o risco de acabar por perder, mais do que já é comum ao ser humano perder em face dos apagamentos que o cérebro faz automaticamente. Haja vista que as expedições feitas entre a era das caravelas duravam meses, submetidas às mais variadas intempéries (pestes, fome, motins, insubordinações, naufrágios, estagnações à deriva por falta de ventos, tempestades, entre outras). Sendo tão longa a duração das expedições, os relatos faziam-se indispensáveis, ainda que se excetuem todas as informações de ordem náuticas, científicas etc. que se ia levantando e catalogando, o seriam indispensáveis por razões burocráticas, para satisfação aos financiadores dessas viagens que queriam saber o quanto antes o resultado de seu investimento. Assim os relatos de viagens funcionavam como uma escrituração de todo o ocorrido ao longo do caminho percorrido, onde era comum descrever os fatos, os povos, os lugares, as intempéries e tudo mais que parecesse interessante. Nesse contexto cultural do período da expansão marítima descobrimentistao foco estava nos lugares visitados, considerados “estranhos” ou “exóticos”.

Por trás desse massivo interesse pelo novo mundoencontra-se a cobiça dos colonizadores em relação às possíveis riquezas dessas terras, ou mesmo a vontade de tomá-las para si mesmo queà base da força e das violências. De todo modo, são as descrições sobre os “nativos” as que mais farão sucesso entre os europeus leitores dos relatos de viagem. Desse modo temos nos relatos de viagem, um texto bastante marcado pelas impressões pessoais do autor, pelo olhar eurocêntrico sobre o outro, por análises científicas e por descrições muito detalhadas no que tange as questões de geografia e até mesmo aos vestuários.

Interessado nessas informações está um público leitor restrito, porém de grande relevância na época por conta de seu prestigiado posicionamento social, consome os relatos em larga escala onde a função do relato de viagem é uma das mais pertinentes: a de formar uma identidade e uma relação de alteridade com os povos chamados “selvagens”. Sendo assim, podemos deduzir que os relatos de viagem gozava de certo “status”, ede certo grau de confiabilidade, pois as ideias ali veiculadas passaram a integrar o imaginário dos europeus que, os liame reproduziam aos iletrados e analfabetos, completando o alcance dos relatos.

Livro das Armadas. séc. XVI

Contudo os relatos são fontes, rastros, reminiscências que sinalizam sobre o que foi o encontro do mundo europeu com esse, denominado “mundo novo”.Noentanto a partir da perspectiva do europeudesbravador, com toda a sua carga subjetiva, com certos nuances de legitimação do investimento, feito para com o investidor, destinatário primeiro dos relatos. Sendo assim, considerar o que relatam os viajantes autores,como verdades é umfeitoque se dá por conta dos leitores a partir de sua relação com o próprio relato. E cabe ao leitor atual, sobremaneira ao historiador que busca estabelecer contato com esses relatos, saber se reportar a tais documentos cientes que tem toda uma carga identitária, contextualizada nestes distantes séculos de história do ocidente, formatando as percepções e leituras dos narradores dos relatos. Não se pode esquecer de forma alguma, que essas foram, as primeiras informações que os europeus tiveram acerca deterras epovosnão-europeus (excetuando-se as terras e povos adjacentes dooriente conhecido), tudo o que se tinha antes eram previsões cientificas que vislumbravam outras terras e povos e especulações de cunho religioso.

A curiosidade dos leitores europeus é um fator que muito certamente influenciou e muito contribuiu para a construção de estereótipos que em nada tinha a ver coma realidade dos povos comentados nos relatos, mas antes respondiam aos construtos simbólicos que compunham o imaginário europeu da época,de todo modo, essas características, essas subjetividades intrínsecas aos relatos interferem na análise, em função do tempo e do espaço do discurso ora posto, desafiando a capacidade de perscrutar do leitor,a capacidade do leitor de sondar os relatos em busca das respostas que julgar serem-los estes capazes de fornecê-los.

As informações que os relatos nos legaram, mesmo sendo passíveis de tantas ressalvas como acima foi postulado, denotam quanto de nosso universo cosmovisual é ainda radicado em muitos estereótipos que foram forjados no imaginário humano, nos séculos das expansões ultramarítimas e que se perpetraram no tempo sendo herdadas pelos indivíduos coevos.

Dança dos Tapuias - Albert Eckhout
Relatos inaugurais como: a carta de Pero Vaz de Caminha, a certidão de Valentim, a relação do piloto anônimo desenharam concepções que vigem e regem (ainda que muitas delas no subconsciente) até os dias atuais.

Quando abordamos a indigenia americana, somos logo reportados à cordialidade e mansidão, à preguiça e inaptidão para o trabalho, ao canibalismo e bestialidade indígena, como se estes fossem denominadores inquestionáveis da identidade indígena, o que não é, mas que, no entanto prevalecem no imaginário atual referenciandoas mais imediatas questões sobre o índio.

A escravidão dos negros da terra e a posteriori dos africanos trazidos para o continente é ainda hoje quesito de análises preconcebidas, culturalmente arraigadas nas práxis, que geram um preconceito velado e uma discriminação sutil, nos hábitos dos contemporâneos no Brasil. As prescrições medievais de comportamento sexual, eurocentralizadas/eurocentralizantes que matizaram os indígenas em sua cultura nativa de devassos, luxuriosos, descaídos seres abandonados pelo Deus do cristianismo, que legou aos europeus a boa nova da salvação e ao continente Ameríndio a perversão e a decadência máxima, reservando ao europeu o dever de submeter os bárbaros, selvagens ameríndios à catequese e à salvação cristã, mesmo sob pena de total destruição de si e de sua cultural.

Joaquim Teles - Kiko di Faria


Referencias Bibliográficas:

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