quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Concepção de realeza da Mesopotâmia e Antigo Egito



Há traços singulares entre a concepção de realeza egípcia e mesopotâmica, porém destacam-se os traços que as diferenciam. A divindade do rei egípcio e a simples humanidade atribuída ao rei mesopotâmico são questões que os documentos históricos acusam, por seu próprio conteúdo, como legítimos. O que ainda incomoda nos estudos sobre o assunto é como no decorrer da história essas concepções de realeza se formaram e se tornaram legitimas para ambos os povos e quais as relações sociais, culturais, de poder foram estabelecidas para a obtenção do reflexo nas concepções de realeza. Antes de tentar resolver tais questões é digno voltarmos o olhar para a construção das concepções do imaginário. Ora, o imaginário fazia-se, e se faz presente nas construções das relações de servo e senhor. No decorrer dos tempos históricos o imaginário serviu como ferramenta de legitimação do cargo imperial, no Egito e na Mesopotâmia a construção do imaginário estava relacionada com o ordenamento natural do cosmo, os fatores naturais (como o comportamento dos rios; as relações entre os povos, entre outros) eram o agente construtor do mágico. “Na visão dos antigos”, afirma Henri Frankfort, “a vida fazia parte de uma vasta rede de conexões que ultrapassavam as comunidades locais e nacionais estendendo-se às profundezas secretas da natureza e as potencias que as governam”[1], tal relato demonstra a participação do real na construção do imaginário e o rei como representante divino no meio dos homens, seja como um homem escolhido pelos deuses ou o próprio deus, tinha por obrigação manter uma relação harmoniosa entre o humano e o divino, o êxito de tais relações refletia no ordenamento natural da natureza, sendo que, qualquer distúrbio natural era reflexo do mau relacionamento entre o rei e as divindades.



Na Mesopotâmia e no Egito a representação do rei nasceu com a necessidade de uma administração centralizada para mitigar crises, contudo, no Egito o rei recebeu status de divindade e na Mesopotâmia o rei era apenas um simples homem que detêm o poder por vontade dos deuses. As formas destas distintas concepções de realeza se dão através da visão do ordenamento natural do cosmo, os egípcios carregavam consigo uma visão estática do universo, com isso eles mantinham preocupação não só com essa vida, mas também com além, pois, para eles, o corpo morre mas o espírito continua a viver. Já os mesopotâmicos preocupavam-se apenas com regozijo desta vida, pois eles acreditavam que os deuses ao criarem o homem lhes deram a morte como quinhão. Todo esse ambiente imaginário é construído por intermédio do ambiente real, logo as diferenças de concepções do imaginário encontram-se no cotidiano. Uma singular diferença no ambiente egípcio e mesopotâmico são os rios, no Egito a presença do Nilo, um rio sempre constante onde o principal problema era o controle das cheias anuais que provavelmente foi sanado com a criação do estado egípcio, a água era onipresente mesmo nos períodos de estiagem, bastava cavar alguns metros para atingir o lençol freático, uma espécie de Nilo subterrâneo. Já na Mesopotâmia o rio Tigre era um rio inconstante que em determinadas épocas do ano não proporcionava água àquela população, também era um rio temido, cheio de mistérios; os mesopotâmicos dependiam inteiramente das chuvas que eram inconstantes.



A eficiência na resolução das crises enfrentadas pelo estado egípcio pode ter proporcionado ao rei status de um soberano divino dando-lhe poderes sobre todo o território egípcio, a partir da vida cotidiana construiu-se toda uma forma de observar o imaginário. Até mesmo quando a cheia do Nilo vinha acompanhada de catástrofes, a desgraça fazia parte da ordem natural do cosmo, se a cheia não viesse era motivo de pânico para a população e que o cosmo encontrava-se conturbado, é o caso das serpentes para os egípcios, um animal temido mas venerado pois se faz necessário ao ordenamento da natureza. A grande angústia dos egípcios residia na perturbação do equilíbrio natural e social, que era restabelecido pelas mãos do faraó por intermédio de um conceito ideologicamente formado chamado maat, que representava o poder do faraó para manutenção da ordem natural e social, no Egito a ordem da natureza era o reflexo da ordem política. A importância do Nilo para os egípcios ia além de uma fonte de fertilidade necessária, ele unia todo o Estado como importante via marinha, significando ainda a expressão geral de uma civilização, ele representava o inicio da civilização egípcia, o que estava além do Nilo era desértico e bárbaro. Foi nessa paisagem da natureza que o egípcio extraiu imagens e metáforas para descrever um universo animado pelos deuses.



O rei mesopotâmico não era divino, mas o cargo imperial sim, não era a própria divindade, mas era um homem escolhido pelos deuses e só ele seria capaz de estabelecer um bom relacionamento entre os homens e os deuses, era o responsável pelo equilíbrio entre os humanos e o divino, o mau relacionamento entre os homens e os deuses era refletido nas potencias naturais. O sentimento de insegurança, da fragilidade humana, devido às crises constantes e difíceis de serem mitigadas, faziam parte das manifestações culturais mesopotâmicas, estes fatores contribuíram para a acentuação do homem como simples homem dependente dos deuses e também para as constantes mudanças no cargo imperial. O rei era escolhido por meio de uma assembléia e o seu perfil era estabelecido de acordo com a crise vigente, o fato da escolha de um determinado rei ser vontade divina não afasta a ocorrência de uma possível usurpação através de um assassinato do rei vigente, o fato seria recepcionado com total legitimidade e a coroação do novo rei era aceita por toda a sociedade. Outro fator que determinou a constante mudança do poder são as intensas guerras, estabelecidas na região do crescente fértil devido o grande número de cidades-estado dependentes umas das outras, que corroeram a região de constantes combates pela dominação dos recursos. Os senhores constantemente aptos a assumir o poder em circunstancias críticas, devem ter fixado apoios políticos e, por meio de conspirações ter se fixado no poder formando assim uma forma de dinastia.



Construído o imaginário, estará inteiramente relacionado com as relações de quem manda e quem obedece, ele irá contribuir para a fixação do poder e as relações que os permeiam. A religião servirá de cimento ideológico para a submissão de uns para com outros, aquele que não for submisso aos deuses e a um soberano será tido como um bárbaro, fora dos limites onde se encontram as regras de civilidade. A obediência ao rei estava próxima da obediência aos deuses e quem negasse a aceitar as imposições seria punido e em alguns casos por punições físicas exercidas pelo próprio Estado. A relação de alcance do poder por uma minoria passa por vários fatores, dentre um deles está o da força, a imposição do poder pela força afasta o mérito do estabelecimento de uma autoridade, e as constantes forças de coerção fazem-se presente no estado egípcio e mesopotâmico. Tal fator não afasta a possibilidade do surgimento de um rei que atua por intermédio de autoridade como através do conceito de maat, a ordem ideal e perfeita, uma autoridade digna de comparação da autoridade dos pais para com os filhos. O conceito de maat faz-nos acreditar numa possível relação de autoridade no antigo Egito, uma relação que ultrapassa o domínio pela força ou pela persuasão, uma autoridade reconhecida como o bem para todos e para a manutenção da ordem durante suas vidas, até mesmo após a morte. Porém a documentação que possuímos do Antigo Egito é bastante escassa e impede-nos de afirmar com certeza essa relação de autoridade entre os membros de tal sociedade.


Certos fatores colaboraram para a fixação do poder mesopotâmico e egípcio, a opulência dos palácios e de obras realizadas em determinados governos, o comportamento da natureza seria o reflexo de uma boa administração. O Egito apresenta uma forma de realeza ainda mais distinta de qualquer outra que poderíamos imaginar a concentração do poder na mão de um único homem, o faraó. Ele é o estado, ele é o território, é para ele que se trabalha e entorno dele que se vive nesta vida e no além. A arte, a literatura gira em torno desse único soberano, a criação de epíteto para legitimar a grandiosidade da autoridade faraônica como “o rei fazedor de chuvas” ou “aquele que faz viver a verdade e destrói a mentira” aproxima o rei faraó de uma autoridade patriarcal. A origem divina, a qual a construção comentamos anteriormente, reafirma definitivamente a autoridade do faraó.



As concepções de realeza egípcia e mesopotâmica possuem traços que as distinguem e outros que as fazem semelhantes por meio de uma possível comunicação entre culturas e encontros no decorrer dos tempos. O homem sempre se organizar em torno de desejos e não apenas numa relação de causa e efeito, e sim em características que atribuem várias faces à formação do Estado dando margem para o acaso no cotidiano do mesmo. A perda de vários documentos que seriam essenciais para a compreensão de ambos estados torna ainda mais distante a construção do cotidiano de egípcios e mesopotâmicos. O que nos resta e tentar imaginar enredos através de partes de documentos que possuímos.



[1] Frankfort, Henri. Concepções de realeza no antigo Oriente Próximo. Traduzido de La royauté et les dieux (trad. francesa de Jacques Marty e Paule Krieger, Paris, Payot, 1951), p. 17.


Lucas Alves de Oliveira Matos

2 comentários:

  1. Sem duvida Lucas recebeu todos os elogios pela produção atraves da nota e diga-se de passagem merecidamente ... FOI DIRETO AO PONTO sem fazer muito rodeio

    PARABENS GRANDE TEXTO LUCAS.

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